DRAMATURGIA SOCIAL :
prática artística e cotidiano social.
(ocupação cultural de instalações industriais desativadas)
Paulo Felipe Varella
RIO DE JANEIRO
TUPINAMBÁS URBANOS GUERRILHA CULTURAL
Na atual conjuntura social brasileira, que apresenta quadros de exclusão social alarmantes, torna-se necessário o estabelecimento de políticas culturais que criem condições de inserir novas parcelas da população no mercado de bens simbólicos, criando mecanismos de difusão e criação artística que possam utilizar-se da produção cultural como instrumento de geração de renda e consolidação da cidadania democrática.
A prática teatral na cidade do Rio de Janeiro - apesar dos esforços louváveis de criação de novos espaços culturais nas regiões periféricas- não se desenvolve de forma abrangente. O circuito tradicional tornou-se um gueto cultural. Imensas áreas da cidade não contam com espaços regulares dedicados às artes cênicas. Se pensarmos em termos de pesquisas cênicas o quadro ainda é mais crítico. Muitos moradores da periferia da cidade nascem e morrem sem pôr os pés no teatro. A imposição hegemônica de produtos da indústria cultural, via rádio e TV, tornou-se a única opção de lazer para diversificadas parcelas da população, tornando-as reféns de marcos simbólicos estabelecidos exteriormente às suas vontades individuais e coletivas.
Faz-se necessário, se quisermos entender a palavra democracia em seu sentido pleno, que novas possibilidades de criação e difusão cultural sejam estabelecidas dentro das comunidades periféricas, criando condições existenciais que possam unificar reflexão e práticas cotidianas. O estabelecimento de uma experiência teatral, com o desenvolvimento de uma dramaturgia específica, que procure dar voz aos setores excluídos da sociedade, seria uma alternativa promissora de criação e intervenção artística, fazendo da prática teatral um instrumento para a produção de conhecimentos sociais que possam transformar as condições de percepção e reflexão da realidade, produzindo um pensamento crítico que insira novos atores sociais nas dinâmicas da cidadania e da plena democracia.
Ao se lançar no desafio de dar voz aos setores sociais populares, deve-se saber distinguir os modelos conceituais estabelecidos, livrando-os das amarras ideológicas tecidas dentro de outras perspectivas históricas. O conceito de popular, dentro do contexto brasileiro sendo entendido dentro do quadro traçado por Alfredo Bosi no livro, Dialética da colonização:
" Uma teoria da cultura brasileira, se um dia existir, terá como sua matéria prima o cotidiano físico, simbólico e imaginário dos homens que vivem no Brasil. Nele sondará teores e valores. No caso da cultura popular, não há uma separação entre uma esfera puramente material da existência e uma esfera espiritual ou simbólica. Cultura popular implica modos de viver; o alimento , o vestuário, a relação homem- mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de parentesco, a divisão de tarefas durante a jornada e , simultaneamente, as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca , o fumo, a bebida, os provérbios, os modos de cumprimentar, as palavras tabus, os eufenismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as festas de padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de plantar feijão, milho e mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir de consolar (...) "
Em primeiro plano não deveria estar a busca de uma revolução visando a tomada do poder, e sim,a ampliação dos focos de atuação e conscientização comunitária, agindo dentro da perspectiva do poder como uma relação social disseminada.( Ya Basta ! Viva Marcos! Viva EZLN !Viva Tupi, or not Tupi, That is the Question ! )
Atualmente, apesar do município do Rio de Janeiro contar com aparelhos de difusão cultural disseminados nas regiões periféricas(Lonas culturais), não foi ainda possível articular, a partir delas, uma política cultural que não fosse mera reprodução das deformações mercadológicas impostas à prática artística. A descentralização da gestão destes espaços públicos, enquanto fator positivo, não pode deixar de ser acompanhada da criação de fórums mais eficazes de discussão que possam melhor qualificar os agentes culturais envolvidos no processo.Outros movimentos alternativos de resistência cultural carecem de articulação no âmago das exclusões reais produzidas em série nas ruas e vielas da periferia- ou se contentam em existir dentro do gueto- criando no final das contas, bolhas de resistências artificiais, absorvidas ou segregadas pela lógica de mercado. (O movimento Hip-Hop, bastião natural de vozes dissonantes e potencialmente apto a ser um grande articulador de uma resistência cultural e política, debate-se entre reproduzir um modelo Racionais MC ou aparecer no Fantástico ou no Faustão.Sobram oportunismos e rupturas estéries, por vezes mais interessadas em ganhar o prêmio Hutus ou tocar em festivais bem patrocinados).
Por outro lado, dar voz a uma comunidade não é impor modelos de expressão de cima para baixo, é deixar que os participantes exponham a sua realidade e ofereçam os fragmentos criativos que podem ser recompostos na totalidade da obra artística a ser desenvolvida.
Não estamos propondo um exercício teórico de arte que se esgotaria na fase de produção artística.As coordenadas criativas deveriam nutrir horizontes mais substanciais dentro da política cultural pública. Como exemplo podemos dizer que na periferia da cidade do Rio de Janeiro existem galpões obsoletos e fábricas desativadas que poderiam abrigar projetos de grande porte, com múltiplos artistas, financiados pelo poder público, que transformariam radicalmente a realidade de diversas comunidades, jogadas nos condicionamentos advindos da guerrilha pelo mercado de drogas ilegais. Uma parcela dos investimentos em segurança pública deveriam também ser canalizados para criação de instrumentos sociais realmente transformadores da realidade, e não meros reprodutores de ilusões criativas reformistas ou alienadas, reafirmando os consensos e por vezes engordando o caixa político de instituições do terceiro setor mal orientadas politicamente que mais parecem estar interessadas em administrar a miséria alheia .
O que está em jogo é uma luta cotidiana para que novos modelos de criação e difusão cultural possam ser constituídos, utilizando-se da prática artística como eixo de um desenvolvimento social auto-sustentável.
Em termos teatrais, estaríamos ao mesmo tempo, estabelecendo uma maneira distinta de mediação da realidade, procurando interrogar as condições contemporâneas de construção do real, onde o espaço público perde lugar para as tecnologias eletrônicas.
"(...) quase tudo na cidade 'acontece' porque a mídia o diz e como parece que ocorre como a mídia quer, acentua-se na mediação social, o peso das encenações, as ações políticas se constituem enquanto imagens da política, de modo que Eliseo Verón afirme de forma radical, que participar é hoje relacionar-se com uma 'democracia audiovisual', na qual o real é produzido pelas imagens geradas na mídia " (Néstor Canclini )
A prática teatral, imersa nos parâmetros acima descritos, surge como alternativa para que novos modelos de construção do real sejam justapostos às imagens eletrônicas, não com o intuito de substituí-las, o que seria improvável, mas com a finalidade de criar mecanismos que possam tornar as relações sociais menos alienadas e tendenciosas, gerando renda e empregos para setores sociais entregues aos joguetes do capital e dos fuzis cada dia mais potentes da guerrilha sem lei e sem ordem.
(
maio- jun - 2010